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Foto do escritorSerginho Neglia

O Selfie, a História, os Annales e a mania da minha mãe em pedir que eu imprima as fotos.

Atualizado: 4 de fev. de 2022


Na disciplina de Introdução aos Estudos Históricos, estudamos a escola dos Annales, ou movimento dos Annales como preferem alguns historiadores. Esse movimento nasceu na França na segunda metade do século XX, e se propunha a questionar a historiografia tradicional, predominante na época, fruto de uma visão positivista, que baseava a história em fatos e datas, sem se aprofundar em análises de estrutura e conjuntura. Tentando traduzir, a escola metódica baseava suas pesquisas nos “documentos históricos”, geralmente oriundos da versão oficial dos fatos, documentos elaborados pelos governantes e pelas elites sociais, não levando em consideração os fatores sociais e culturais, por exemplo.


Os “Annales” propuseram a reformulação da concepção de “fontes históricas”, propondo uma análise histórica mais ampla e multidisciplinar. A estas alturas você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com a onda do Selfie e com a mania da minha mãe em pedir que eu imprima as fotos. Então eu explico:


Certa vez eu precisei encontrar uma foto minha, da época do Vida Urgente, para uma reportagem que foi publicada no caderno Kzuka da ZH. Procurando percebi que tenho poucas fotos minhas desta época, fotos de qualidade então, são pouquíssimas, então comecei a refletir sobre o assunto, linkando com meu aprendizado em aula.


Sempre que lemos alguma coisa sobre história, pressupomos que aquilo seja uma reprodução “fiel”, ou no mínimo bem próxima, do que realmente aconteceu, porém, do ponto de vista dos historiadores da “antiga escola metódica” o que define a versão da história são os “documentos”, principalmente os documentos oficiais. Refletindo sobre isso eu pensei: Se for assim eu praticamente não existi para o Vida Urgente. Fotografei o lançamento do Vida Urgente em 1996, participei ativamente de muitos momentos importantes da Fundação Thiago de Moraes Gonzaga nestes 19 anos, sendo que em quase 10 anos deles respirei Vida Urgente 24 horas por dia, no período que fui Diretor Executivo, porém, existem poucos vestígios materiais disto, primeiro por estar quase sempre atrás da câmera (Condição básica de um fotógrafo) e por nunca ter me preocupado em deixar marcas de minha presença, pois quando fazemos algo por amor e de forma desinteressada, nunca pensamos nisto. Assim como nas sociedades, de um modo geral, milhões de anônimos ajudam a construir os fatos históricos, e jamais serão lembrados por isso, principalmente se não compreendermos a história de forma mais ampla e só enxergá-la como uma reprodução dos documentos.

São poucas as imagens como essa onde apareço nas atividades do Vida Urgente. Na maioria das vezes estou do outro lado da câmera. Nesta foto pessoas muito especiais. Da esquerda para a direita começando pela fila de trás: Eu (Serginho Neglia), Rodrigo Adams, Natacha Gastal, Luciane Loureiro, Carla Miranda, Suzana Viana, Diza Gonzaga, Sheila Uberti, Cibele Farias, Alex Camargo, Jorge Curtis, Maitê Bernardes, Letícia Pavim, André Correa, Mascelo Olympio, Jéssica Charão, Gabriela Carpes, Gerson Gonzaga, Daniela Luzardo e Vicente Gonzaga

A compreensão da necessidade de ampliação do conceito de “documento histórico” proposta pelos Annales permite que possamos, por exemplo, reconstruir a história da escravidão no Brasil, utilizando-se de diversos mecanismos, inclusive depoimentos, memórias, sem o qual seria impossível alguma proximidade com a realidade, já que as elites tinham o poder sobre todas as formas de comunicação da época, e assim a maior parte dos “documentos” eram oriundos desta elite (Isso é claro, sem falar que em 1891 , Rui Barbosa, então Ministro da Fazenda, receoso que os “proprietários de escravos” exigissem indenização do governo, ordenou a queima dos documentos que informavam a quem pertenciam os escravos. Muitos não obedeceram essa ordem e são os documentos remanescentes que muitos historiadores utilizam em seus estudos sobre escravidão). Portanto, se medirmos a relevância das pessoas, em determinado “acontecimento histórico”, pela quantidade de vezes que elas aparecem nos “documentos,” estaremos correndo o risco de cometer grandes injustiças. Por isso, a importância de outras observações, como depoimentos, manifestações culturais e etc.

Estamos vivendo uma época muito interessante do ponto de vista de “documentação histórica”, já que, de posse de equipamentos eletrônicos e da internet, produzimos e distribuímos grande quantidade de textos, imagens, vídeos e áudios, o que nos proporcionam um vasto material para a pesquisa de comportamentos e acontecimentos. A onda Selfie por exemplo, teria resolvido a dificuldade em ter imagens minhas, problema que as gerações atuais não possuem tamanha é a quantidade e registros de si mesmo que produzem.


Nessa linha de pensamento e preocupado com a durabilidade dos “documentos históricos” lembrei que minha mãe insiste que as fotos sejam impressas, já que não utiliza computador, e que gosta de enfeitar a casa com porta retratos dos filhos, e dos netos principalmente. Ela vive cobrando isso da gente, o que me faz lembrar da morte o meu avô que deixou uma lata cheia de fotografias antigas. Pensei comigo: Será que terei de deixar um HD externo de herança para minhas filhas? Será que posso confiar nas redes sociais e nos espaços disponíveis para armazenamento de imagens na internet? E se o Obama tem um ataque de fúria e resolve nos deletar? O Facebook pode nos deletar quando eles quiserem, está nos termos de uso, e tem muita gente torcendo para que o Mark Zuckerberg não tome um pileque e nos delete a todos. Exageros a parte, acho que a minha mãe tem certa razão, e por isso vou selecionar umas fotinhos e começar a imprimir para poder deixar algum vestígio da minha passagem por este mundo.

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